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2001, uma Odisséia no Espaço: transcedência ou imanência?

  • Foto do escritor: Ricardo Orsini
    Ricardo Orsini
  • 8 de jun.
  • 8 min de leitura

Atualizado: 9 de jun.

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O YouTube está repleto de vídeos do tipo “explicando 2001” ou “entendendo o final de 2001”. Afinal, os enigmas propostos por 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, parecem convidar a esse exercício de decifração.

A lista de perguntas é longa: o que é o Monólito? Quem o controla? Por que veio à Terra e envia um sinal direcionado a Júpiter? O que é o ambiente de estilo clássico onde o astronauta Bowman é confinado? O que fizeram com ele? Qual o significado do Star Child e por que ele retorna ao nosso planeta?

Contudo, proponho aqui uma abordagem diferente. Em vez de buscar respostas literais, a análise parte do princípio de que o filme é uma expressão emblemática do que  Umberto Eco definiu como "obra aberta": uma estrutura que, intencionalmente, convida o espectador a múltiplas interpretações possíveis que não se excluem mutuamente.

A estrutura ambígua da obra aberta

Na obra aberta não há uma imposição a uma visão fechada, como em certos filmes de investigação policial, por exemplo, onde uma lógica dedutiva inexorável nos leva, ao final, a desvendar o crime. 

A noção de obra aberta não implica, entretanto, que qualquer leitura seja válida. Kubrick nos oferece várias pistas, elementos carregados de intenção que guiam nossa análise e nos permitem construir significados coerentes.

Mas não são pistas no sentido de um romance policial, onde cada peça se encaixa para revelar uma única verdade. Pelo contrário, funcionam mais como âncoras para as reflexões metafísicas propostas por Kubrick. 

Em 2001, as pistas não são caminhos para a interpretação correta. Elas não servem para diminuir a ambiguidade do filme, mas sim para qualificá-la. 

E para uma produção de tamanhas proporções, a coragem de Kubrick foi notável ao entregar um produto final com uma carga tão elevada de ambiguidade.

A música como âncoras filosóficas

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A trilha sonora é uma dessas pistas que qualificam a ambiguidade do filme, funcionando como uma âncora que nos conduz a diversas reflexões de cunho metafísico.

Kubrick era apreciador da música erudita e fez um uso sistemático dela em vários de seus filmes. Sempre enigmática, a música em 2001 vai muito além do efeito climático, acompanhando a emoção das cenas. 

Aliás, Kubrick é conhecido pela frieza emocional de seus filmes, e não seria pela música que ele tentaria evocar emoção das cenas, como o fez histrionicamente Christopher Nolan em seu Interstellar.

Ao contrário, em 2001, a música dá pistas abertas, intelectualizadas e cheia de sutilezas. Muito além da função de acompanhamento, a trilha sonora é uma espécie de comentador filosófico que articula a tese central do filme com uma precisão intelectual surpreendente. 

Em 2001, a música é argumento

Stanley Kubrick estabelece uma dialética irônica através da obra de dois compositores germânicos de sobrenome Strauss: Johann e Richard. Embora tenham vivido na mesma época - com Johann sendo 39 anos mais velho que Richard - eles não eram parentes nem compartilhavam do mesmo estilo de composição.

O poema sinfônico de Richard Strauss, inspirado na obra Assim Falou Zaratustra, do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, é uma música monumental, cheia de vigor e simbolismos. Ela contrasta bastante com a elegância burguesa da valsa de salão de Johann Strauss II, Danúbio Azul.

A elegância e o conforto burguês da valsa, que acompanha o “balé” das naves espaciais, esvaziam a conquista tecnológica de qualquer grandiosidade espiritual. A coreografia denota estagnação em vez de verdadeira evolução.

A ironia sutil da valsa de Strauss 

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Kubrick parece ter construído uma ironia profundamente intelectualizada, por estar ancorada numa metáfora muito indireta e quase iniciática. Quem não entende as referências filosóficas e musicais, não acessa sua ironia.

Se Zaratustra aponta para a dolorosa possibilidade da autossuperação, a valsa Danúbio Azul serve como um comentário mordaz sobre o fracasso dessa promessa. 

Atingimos o ápice da evolução tecnológica com a conquista do espaço. Mas o que celebra essa conquista? Uma música de salão do século XIX, símbolo da elegância burguesa, do conforto e da repetição cíclica (da valsa). Uma música domesticada pelos salões vienenses. 

As naves valsam em uma coreografia de perfeição estéril. A humanidade aprendeu a flutuar em gravidade zero. Sua alma, no entanto, permanece terrivelmente pesada. Está atolada na banalidade de instruções de toaletes, conversas protocolares e videoconferências insípidas.

A grandiosidade visual da tecnologia é deliberadamente esvaziada pela trilha sonora, que a revela como uma evolução meramente superficial. O homem não se superou; apenas encontrou uma forma mais sofisticada de se manter o mesmo, um "último homem" que "pisca os olhos" no conforto de sua cápsula espacial.

Complementando essa dialética, Kubrick mobiliza os extremos do espectro auditivo, utilizando uma música improvável para filmes de estúdio: a Atmosphères e o Requiem, ambas do compositor vanguardista György Ligeti.

As músicas, para além de evocar uma atmosfera emocional (outra ironia no nome da música), criam uma textura contrapontística com o que é visto, transformando o silêncio e a ordem geométrica das imagens de Kubrick num campo de batalha sensorial.

A música não está a serviço de evocar emoções específicas. Ela traz uma dissonância que reforça a experiência de assombro e desorientação de cunho muito mais intelectual do que emocional.

As evocações filosóficas da música de Richard Strauss

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A música de Richard Strauss se repete em cenas-chave (a abertura do filme, a descoberta do osso como arma e a transformação de Bowman no Star Child). Combinada com a valsa Danúbio Azul, temos uma complexa chave interpretativa que nos convida a questionar a própria ideia de progresso que o filme aparenta celebrar.

O poema sinfônico Assim Falou Zaratustra, de Richard Strauss, faz uma evocação direta do filósofo Nietzsche, e seu tom épico, a princípio, poderia ser visto como uma celebração da jornada da humanidade.

A ironia da escolha musical posterior, no entanto, quebra essa ideia. Ao utilizar a futilidade de uma valsa de salão para comentar a suposta evolução tecnológica, Kubrick expõe sua visão crítica.

Fica claro, portanto, que o tom épico inicial não era de fato uma celebração, mas parte de um argumento maior que a própria trilha sonora se encarrega de desenvolver.

A música parece argumentar que o salto cognitivo do homem é a noção de vontade de potência nietzschiana se manifestando, seja na descoberta da ferramenta pelo primata, seja na apoteose final do Star Child

As sutilezas filosóficas de Kubrick

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Uma leitura muito recorrente de 2001 sugere uma narrativa de transcendência.

Nessa visão, o Monólito é um instrumento criado por seres superiores (ou mesmo por Deus), que guiam e aceleram a evolução humana, culminando no Star Child como o ápice desse processo: a ascensão do homem a um plano de existência mais elevado, quase espiritual. 

Na filosofia, a transcendência propõe que valor, verdade e salvação se encontram num plano superior e externo ao mundo sensível – seja um paraíso divino, uma realidade platônica ou, pensando o que já se falou sobre a transcendência em 2001, uma consciência alienígena. 

Aqui, porém, entra a sutileza da “pista” nietzschiana, que age como a principal chave para desmontar essa interpretação. 

A filosofia evocada por Assim Falou Zaratustra é a da imanência, não da transcendência. Zaratustra não prega a salvação por uma força externa, mas a autossuperação: a árdua tarefa do homem de se tornar um Übermensch (super-homem ou além-do-homem) por meio de sua própria vontade.

Sob essa ótica, o Monólito deixa de ser um guia alienígena e se torna um catalisador existencial, um abismo silencioso que força a emergência de um potencial que já residia no homem. 

Da mesma forma, o Star Child não seria uma alma que ascendeu aos céus, mas uma representação desse Übermensch, o próximo estágio evolutivo que, ao final do filme, retorna à Terra, ao plano da existência, para continuar o ciclo de devir. 

O Star Child como o além-do-homem de Nietzsche

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Para Nietzsche, a superação do homem se dá a partir de si mesmo. O Übermensch deve abandonar a esperança em salvadores e se tornar seu próprio redentor, forjando novos valores através da "vontade de potência". 

O além-do-homem  não é uma entidade que ascendeu para outro plano, mas sim a manifestação mais potente e criadora de vida dentro do próprio plano terrestre, num contínuo processo de autossuperação.

Talvez por isso ocorra a volta do Star Child para a Terra.

Se levarmos a sério a referência de Kubrick a Nietzsche, o Monólito deixa de ser um deus ex machina alienígena que "concede" inteligência. Ele funciona mais como o abismo nietzschiano: uma presença enigmática e silenciosa que, ao ser confrontada, força a emergência de um potencial latente dentro dos homens-macaco. 

Neste sentido, a descoberta do osso como arma não é uma dádiva, mas o primeiro e trágico passo de uma autossuperação, onde a inteligência se afirma através da violência. 

O narrativa do filme não seria uma jornada de revelação de uma verdade transcendental, mas sim a construção de um monumental questionamento sobre a condição humana, numa perspectiva não transcendental, ou seja, imanente.

A evocação de Nietzsche afasta o filme de uma confortável fantasia de redenção cósmica e o aproxima de um drama muito mais austero (e talvez pessimista) sobre a capacidade humana de se recriar.

Narrativa não linear e cíclica

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A evocação da obra de Nietzche por meio da música de Richard Strauss não fica na ideia de imanência.

2001 é um filme de narrativa não-linear. E sua estrutura episódica e cíclica pode ser interpretada através da ideia nietzschiana do eterno retorno. 

No filme, isso não significa uma repetição literal dos mesmos eventos, mas sim a recorrência de um padrão fundamental. Quando uma forma de existência atinge seu limite, ela é forçada a confrontar o enigmático Monólito e, através de uma crise, transforma-se em algo novo.

O filme nos apresenta este ciclo em duas grandes voltas, uma espelhando a outra em um nível de consciência mais elevado.

O primeiro ciclo ocorre na "Aurora do Homem". Os pré-humanos vivem em um estado de estagnação. A chegada do Monólito catalisa uma crise que resulta em uma transformação: o nascimento do "homem-ferramenta", definido pela inteligência instrumental e pela violência.

O segundo ciclo se inicia milhões de anos depois. O homem tecnológico, ápice do ciclo anterior, atinge uma nova forma de estagnação: um progresso técnico impressionante, mas espiritualmente vazio, cuja lógica pura é encarnada na inteligência artificial HAL 9000, a ferramenta “perfeita”.

A crise deste ciclo é a rebelião de HAL, forçando Dave Bowman a confrontar e desmantelar sua própria criação. Este colapso o leva ao encontro do segundo Monólito, que desencadeia a próxima transformação. 

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A caótica sequência do Stargate representa a dissolução do "eu" antigo de Bowman, necessária para o seu renascimento como o Star Child. Assim, o filme utiliza a estrutura do eterno retorno não para dizer que a vida se repete de forma idêntica, mas para sugerir que a evolução acontece em uma espiral ascendente. 

Cada ciclo repete o mesmo processo de crise e superação, mas em um plano mais complexo. O Star Child, ao retornar para a órbita da Terra, não representa um fim, mas o início de um novo ciclo, pronto para enfrentar a próxima inevitável crise em sua jornada de devir.

E essa superação final não vem de fora; ela ocorre quando o homem encara sua própria morte e, no último instante, aponta para o Monólito, o eterno catalisador. 

O Star Child não é um anjo redentor. É o retorno. É a imagem nietzschiana do homem que superou a si mesmo, o início de um novo ciclo. Sua forma embrionária sugere potencialidade, não um estado final. 

Seu olhar silencioso para a Terra não oferece conforto ou promessa de paz. Ele é pura ambiguidade. Seria o Übermensch? Ou apenas o início de um ciclo ainda mais perigoso? 

O filme não responde!

Kubrick, fiel à sua visão, encerra a obra com a mais profunda das interrogações. Ao orquestrar essa complexa teia de referências filosóficas e ironias audiovisuais, ele não nos entrega uma odisseia com destino certo, mas nos abandona à deriva em um cosmos de signos. 

A grandiosidade de 2001 reside precisamente aí: em sua exigência de que nós, os espectadores, nos tornemos os verdadeiros protagonistas da odisseia, forçados a criar nosso próprio significado no silêncio ensurdecedor que a obra deixa como legado.

FICHA TÉCNICA

2001: A Space Odyssey (2001: Uma Odisseia no Espaço), 1968, EUA/Reino Unido. Direção: Stanley Kubrick. Roteiro: Stanley Kubrick, Arthur C. Clarke. Diretor de Fotografia: Geoffrey Unsworth. Elenco principal: Keir Dullea, Gary Lockwood, William Sylvester, Daniel Richter, Douglas Rain (voz de HAL 9000). Produtora(s): Metro-Goldwyn-Mayer (MGM), Stanley Kubrick Productions. Duração: 149 minutos. Idioma original: Inglês. Principais prêmios e indicações: Oscar de Melhores Efeitos Visuais. Indicado ao Oscar de Melhor Diretor, Melhor Roteiro Original e Melhor Direção de Arte.

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